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sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Vozes pelo SIM: Assunção Esteves

Aborto, a tragédia grega e o coro

O conflito moral do aborto é, porventura, o mais gritante dos conflitos morais. Ele perturba-nos na nossa consciência íntima e desafia-nos para a compreensão da justiça, na ligação estreita entre natureza e civilização. A vida que se forma e a autodeterminação da vida plena.

1.A tragédia grega é a imagem do conflito moral no aborto. Princípios e personagens em recíproca contradição. O universal da regra sujeito à provação das circunstâncias. O dilema entre a intransigência e a reconciliação serena recomendada pelas odes do coro. Uma teodiceia de princípios que se confronta com a pluralidade de sujeitos e o desafio da sua repartição numa situação concreta e humana. Na tragédia de Sófocles, o coro repete constantemente que a fonte de todo o mal é a ausência de medida. Verdadeiramente, a agonia da solução final da tragédia resulta da irredutibilidade cega das partes em confronto, à margem da orientação do coro.

2. A questão do aborto surge numa situação de conflito moral. Um conflito moral e constitucional - porque o sistema constitucional é um sistema moral! O conflito dá-se entre o princípio da vida em formação e o princípio da autonomia da mulher, porque a autonomia ou direito a formar opções de vida não é menos consistente no drama isolado de cada indivíduo do que o é na liberdade do espaço público.
É a afirmação de princípios universais contrários na complexidade da vida concreta que exige à justiça a determinação da justa medida.

3. Nenhum outro tema estará tão carente de uma estratégia deliberativa de largo alcance como o aborto. Uma estratégia consubstanciada num referendo. O referendo é o contributo de um auditório mais vasto para a definição da justa medida no conflito moral do aborto. Como o coro das tragédias gregas, ele aponta a fronteira entre a derrota e o compromisso.

4. O dilema moral em que se confrontam os princípios da vida e da autodeterminação exige uma solução ao legislador e faz apelo ao senso comum e ao consenso amplo. A justiça, aqui, está longe da consciência isolada do herói da tragédia grega. Ela convoca a sabedoria prática para uma decisão justa. O artigo 18.º da Constituição aí está: a proporcionalidade é a verdadeira máxima, o mais alto valor. "O mais que possas pondera-me, pondera tudo bem" (o coro em Filoctetes).

5. Porque o sistema constitucional é um sistema de princípios morais, tem o legislador de garantir-lhe a máxima eficiência. A questão do aborto não é pura questão de consciência. O Parlamento está aqui obrigado a legislar, definir limites. Bem vistas as coisas, os limites definidos para o aborto na pergunta do referendo evidenciam já o pensamento do legislador sobre esses limites. Para os deputados que aprovaram a pergunta do referendo - mesmo os que não admitem a descriminalização - eles são constitucionais!

6. É ainda a Constituição que desqualifica as tentações de legislar o aborto como crime sem pena ou sem julgamento. Os direitos fundamentais existem indissociáveis de uma metódica de coerência, integridade e igualdade do sistema da lei. Como pode o direito censurar uma acção e não a punir? Ou, como pode não punir um tipo de crime, mas punir os outros tipos de crime? Ou como pode punir com prestações alternativas sem prévia condenação em julgamento? Que resposta tem para o aborto clandestino?
O crime sem pena ou sem julgamento atenta contra o Direito como integridade.

7. E, no entanto, o aborto clandestino não é a justificação decisiva para a descriminalização do aborto. Um crime, se é crime, não se apaga porque sistematicamente desafia a lei e se esconde. A justificação decisiva está nas próprias premissas da justiça. Está a montante, nos valores que são chamados a decidir o conflito moral do aborto. E aqui o aborto clandestino faz saltar aos nossos olhos quais são esses valores. Como que o resultado a esclarecer o ponto de partida. O aborto clandestino constitui um teste à lei em vigor, à sua capacidade de composição da ordem do mundo. Ele confronta-nos a todos com a necessidade de perguntar se, ao menos em certos limites, a autonomia da mulher não é também susceptível de valoração moral. Afinal, é o conflito íntimo e trágico do aborto em supremo risco e suprema dor que é patenteado na específica provação da sua clandestinidade. E, uma coisa é certa: não há regra justa se ela não passa a prova das circunstâncias e das consequências.

8. E rejeitemos a falsificação do debate. Descriminalizar o aborto, em certa medida, não é liberalizar o aborto. A liberalização do aborto consideraria, numa visão parcial, empobrecida, simplificada e, por isso mesmo, injusta, a pura subjectividade da mulher. A criminalização do aborto que abstraia inteiramente dessa subjectividade será, do mesmo modo, parcial, empobrecida, simplificada e injusta. A justiça estará aqui "na renúncia efectiva de cada facção à sua parcialidade" (Hegel). É esta conciliação por renúncia que a tragédia é incapaz de produzir.

9. Mas uma comunidade constitucional não é uma comunidade de heróis, nem a sua justiça admite a intransigência altiva das personagens da tragédia grega. Ao invés, ela exige a medida da conciliação e o justo reconhecimento dos valores que aqui estão verdadeiramente em causa. De todos os valores em causa. Ora, no universo moral dos valores que justificam a descriminalização do aborto, a actual lei não reconheceu, como devia, o direito de a mulher formar opções sobre a própria vida e é nesse sentido que ela é injusta.

10. A vida que se forma e a autodeterminação da vida plena são ambas expressão de um radical humano que se impõe, inteiro, aos critérios da justiça. Para que estes valores subsistam em conjunto, a cedência na sua existência concreta é o preço a pagar. A justiça, aqui, afasta-se da estreiteza do ângulo das personagens da tragédia grega. "A afirmação de que existem direitos absolutos bem pode fazê-la quem queira sacrificar-se no altar dos princípios, mas não é válida no plano do direito constitucional" (Robert Alexy).

11. O conflito moral do aborto é, porventura, o mais gritante dos conflitos morais. Ele perturba-nos na nossa consciência íntima e desafia-nos para a compreensão da justiça, na ligação estreita entre natureza e civilização. A vida que se forma e a autodeterminação da vida plena. O si mesmo e o outro que é, afinal, uma parte do si mesmo. "A criação da vida (zoo) e o potencial criativo da mulher na vida (bio)" (Dworkin). Esta contradição tão estranha e intensa! Como vamos organizá-la e resolvê-la? Uma coisa é certa. Não podemos nem devemos amputar o universo moral de valores que é o ponto de partida. Não podemos nem devemos recusar a medida que é o ponto de chegada.

12. No dia do referendo, vou dizer "sim"! Não por razões de solidariedade ou piedade. Por razões de justiça.
... Mesmo com a possibilidade de optar até às dez semanas, a mulher ficará sempre com a impossibilidade de evitar a dor.



Assunção Esteves

Deputada do PSD no Parlamento Europeu